VIDA&

O ESTADO DE S.PAULO

 

Quarta-feira, 20 de Outubro de 2004

Os dois lados da dependência intelectual

Fernando Reinach

Você utilizaria um medicamento não aprovado para uso nos EUA? Você não está sozinho, muitas pessoas acreditam que devemos seguir cegamente as recomendações internacionais. A história da vacina contra a infecção por rotavírus talvez faça você pensar duas vezes.

O rotavírus causa diarréia e desidratação. Se não forem tratadas, podem levar à morte. O vírus é contagioso e infecta a maioria das crianças. Nos EUA, 500 mil consultas, 70 mil internações hospitalares e entre 20 e 40 mortes são causadas pelo rotavírus todos os anos. Isto equivale a uma morte em cada 100 mil crianças.

No Terceiro Mundo, a infecção pelo rotavírus é 500 vezes mais letal. É responsável por 40% dos casos de diarréia grave. Por causa da falta de tratamento adequado, causa a morte de cerca de 610 mil crianças por ano. o que equivale a 1 morte em cada 200 crianças.

Em 1998, os EUA aprovaram uma vacina contra o rotavírus. Após nove meses, e milhares de crianças vacinadas, foi descoberto um grave efeito colateral. Ocorreram 15 casos de uma forma letal de obstrução intestinal. Cálculos epidemiológicos estimaram que esse efeito colateral causaria uma morte em cada 2.500 crianças vacinadas. Nos EUA, mais crianças morreriam por causa da vacina do que pela diarréia causada pelo rotavírus. O governo americano retirou a vacina do mercado. Sem dúvida, uma decisão correta. Os riscos eram maiores que os benefícios.

A decisão dos EUA causou polêmica. Se a vacina fosse utilizada no Terceiro Mundo, ao invés de morrer 1 em cada 200 crianças de diarréia, morreria 1 em cada 2.500 por causa dos efeitos colaterais da vacina. Foi estimado que a vacina poderia salvar 500 mil crianças por ano. Os benefícios poderiam ser maiores que os riscos.

Em 2000, a Organização Mundial da Saúde organizou um encontro com governantes de países do Terceiro Mundo para tentar convencê-los a utilizar a vacina. Foi um fracasso. As autoridades não aceitaram que suas populações fossem tratadas como "pessoas de segunda classe", submetidas a uma vacina considerada insegura nos EUA.

Uma nova vacina foi desenvolvida e está sendo testada. Terá de se mostrar muito segura para ser aprovada nos EUA. Existe a preocupação que um efeito colateral raro impeça sua liberação. Com um custo de mais de US$ 500 milhões para desenvolver e testar uma nova vacina, dificilmente uma terceira tentativa será feita.

Muitas pessoas acreditam que órgãos técnicos com a missão de avaliar independentemente os riscos e os benefícios de novas tecnologias são desnecessários nos países do Terceiro Mundo. Sugerem que esses países adotem as resoluções dos países desenvolvidos. O problema é que os EUA decidem com base no que é melhor para sua população. A história da vacina contra o rotavírus é um bom exemplo de como a dependência intelectual pode ser letal. Mais detalhes na revista Science, vol. 305, pág. 1.891.

*Fernando Reinach (fernando.reinach@estadao.com.br) é professor da USP