Folha de São Paulo 28 de maio de 2004

TENDÊNCIAS/DEBATES

Doutores para quê?

FERNANDO REINACH e JOSÉ FERNANDO PEREZ

A política industrial do governo Lula, conforme enunciada pelos ministros Palocci e Furlan em artigos recentes, tem como um de seus pilares o incentivo ao processo de inovação na empresa. O governo já enviou ao Congresso a Lei de Inovação, elaborada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, e está estudando medidas microeconômicas que fomentem atividades de inovação no setor produtivo. Gostaríamos de propor uma medida simples, efetiva e de fácil implementação.
Como é bem sabido, só há processo de inovação quando existe investimento em pesquisa e desenvolvimento dentro da própria empresa. Um pré-requisito para que esse investimento ocorra é a presença de pesquisadores na empresa. Na maioria dos países em desenvolvimento, a falta pura e simples de pesquisadores impede que ocorra a inovação.
Nesse aspecto, o Brasil está em posição privilegiada. Ao longo dos últimos 40 anos, os investimentos feitos pelo CNPq, pela Capes e pela Fapesp permitiram a criação de uma pós-graduação bem organizada e eficiente. Hoje o Brasil forma 7.000 doutores por ano. Mantido o ritmo de crescimento, vamos formar 10 mil doutores em 2010. Nesse quesito, só a Coréia do Sul e a China tiveram taxas de crescimento superiores às brasileiras.
Se temos doutores, por que não temos inovação? A causa é compreendida: os doutores não estão onde deveriam estar. Nos países desenvolvidos e até mesmo na Coréia do Sul, a maior parte dos pesquisadores trabalha em empresas. No Brasil, a grande maioria ainda está nas universidades.


Se temos doutores, por que não temos inovação? A causa é compreendida: os doutores não estão onde deveriam estar


O setor acadêmico não deve e nem pode absorver todos os doutores formados no Brasil. A falta de oportunidades é a principal causa da evasão de cérebros. Afinal, para os países desenvolvidos, é sempre mais barato importar doutores do que investir na sua formação. Um título de doutor é o melhor passaporte para obter um visto de trabalho nos EUA ou no Canadá. Uma estimativa conservadora demonstra que a formação de um doutor requer um investimento de não menos do que R$ 200 mil, o que, no Brasil de hoje, corresponde a um investimento anual de aproximadamente R$ 1,4 bilhão. O que fazer, então? Diminuir o investimento na pós-graduação ou incentivar a contratação de doutores pelo setor privado?
Propomos uma resposta simples: que a contratação de doutores pelo setor privado, desde que para a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento, seja desonerada de todos os encargos sociais. Essa desoneração valeria para os dez primeiros anos após a obtenção do título de doutor e só teria valia para títulos outorgados por pós-graduações credenciadas pelo Ministério da Educação.
Formulado dessa maneira, o incentivo traz muitas vantagens: é de simples verificação, pois a lista de doutores é pública e de conhecimento do MEC. É de valor conhecido e pré-definido, pois, na melhor das hipóteses, seria estendido a aproximadamente 50 mil pessoas nos próximos dez anos. É limitado no tempo, pois removeria do grupo com isenção os doutores com mais de dez anos de formados, período suficiente para uma bem-sucedida inserção no processo de inovação.
Além das vantagens de implementação, esse subsídio pode desencadear um ciclo virtuoso: deve gerar empregos, pois a contratação de cada doutor em processos de inovação gera de 10 a 15 empregos diretos nos departamentos de pesquisa e desenvolvimento. Deve permitir a proliferação de empresas de base tecnológica, onde pesquisadores constituem o cerne da força de trabalho. Deve incentivar a expansão do sistema de pós-graduação, aumentando o mercado de trabalho. Deve incentivar o investimento privado no sistema de pós-graduação. Deve contribuir para a diminuição da fuga de cérebros. E, finalmente, essa medida deve aumentar a interação entre as universidades e as empresas. Afinal, a criação, dentro das empresas, de um corpo técnico que domina a linguagem e a cultura científica é pré-condição para que haja o diálogo e a colaboração entre os setores empresarial e universitário.
O impacto dessa medida seria imediato. Os custos para a contratação de doutores teriam uma diminuição de aproximadamente 50%. As empresas dispostas a investir na inovação tecnológica teriam um estímulo muito forte, pois o insumo mais caro nesse processo são os recursos humanos. Essa medida tem a vantagem adicional de permitir que as empresas decidam livremente em que direção devem caminhar seus esforços em pesquisa e desenvolvimento.
Não se trata aqui de propor a criação de privilégios para uma categoria de brasileiros que tiveram uma educação sofisticada. Trata-se de garantir que a nação tenha, na forma de desenvolvimento tecnológico, retorno sobre o investimento que faz na formação de seus pesquisadores. Acreditamos que somente o desenvolvimento tecnológico e a inovação permitirão que nossa indústria seja competitiva e capaz de gerar empregos e riqueza de maneira sustentável. Nossa resposta à questão inicial é simples: doutores para a inovação!


Fernando Reinach, 48, professor titular do Instituto de Química da USP, é diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios. Foi presidente da CTNBio em 1999. José Fernando Perez, 59, professor titular do Instituto de Física da USP e membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, é diretor científico da Fapesp.