Transgênicos: precaução ou obstrução?
FERNANDO REINACH
As discordâncias entre os Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente
têm dominado o debate sobre transgênicos. Numa visão simplista esta
discordância seria esperada, afinal a atividade agrícola sempre foi a maior
inimiga do meio ambiente. Na realidade, a única esperança para a preservação
do meio ambiente nos próximos 50 anos está no desenvolvimento tecnológico da
agricultura. A obstrução desse progresso implica obrigatoriamente numa
destruição mais rápida do meio ambiente.
Mas, se por um lado a agricultura é a maior inimiga do meio ambiente, a
tecnologia agrícola tem sido uma das armas mais poderosas na sua preservação,
ainda que parcial. Parece óbvio que pessoas envolvidas na luta pela
preservação ambiental deveriam estar extremamente interessada em compreender
a fundo o potencial e os riscos dos OGMs. Quando isso não ocorre, na melhor
das hipóteses significa desinformação, na pior, um total despreparo para a
missão que se impuseram.
Para avaliar a segurança de todo produto ou serviço que envolva
biotecnologia com uso de manipulações genéticas foi instituída no Brasil a
CTNBio, uma comissão criada e regulamentada pela Lei de Biossegurança. A
CTNBio é composta de 50% de cientistas com capacidade de avaliar
tecnicamente os riscos, tanto médicos como ambientais, e 50% de
representantes de todos os ministérios envolvidos, da sociedade civil e do
setor privado. É importante notar que, entre os cientistas da CTNBio, uma
fração sempre foi composta de ecologistas com formação técnica e acadêmica
na área. A legislação não prevê ambientalistas sem formação acadêmica
comprovada ou uma representação significativa do chamado terceiro setor.
Devido à falta de preparo técnico de grande parte dos ambientalistas, os
riscos e as vantagens envolvidos na liberação de transgênicos praticamente
não têm sido discutidos. O debate tem sido centrado nos aspectos ideológicos
e partidários e se baseado principalmente em informações quase que
anedóticas espalhadas na internet (quantas pessoas leram o parecer técnico
da CTNBio que decidiu pela liberação da soja resistente ao glifosato?).
Ao longo dos anos a difusão dessas tecnologias em todo o mundo e a falta
de evidências reais de efeitos prejudiciais significativos forçaram os
grupos contrários a essa tecnologia a se agarrarem ao chamado "princípio da
precaução".
Apesar do nome pomposo, o princípio é simples e todos nós o utilizamos
no dia-a-dia. Ele reza que, na dúvida, é melhor tomar o caminho cauteloso.
Ele é ensinado nas auto-escolas: "Na dúvida, não ultrapasse". A mesma idéia
é aplicada na aprovação de novas tecnologias, como a certificação de um novo
modelo de avião para a sua utilização na aviação civil. Se houver dúvidas
quanto a sua segurança, é melhor não adotar. O princípio é tão óbvio que ele
faz parte de qualquer processo de decisão.
O problema ocorre quando, em vez de entender o princípio como "na dúvida
não ultrapasse", ele é utilizado no sentido estrito: "Só ultrapasse se não
tiver dúvidas", ou "Só aprove uma nova tecnologia se não houver nenhum risco".
Nesta interpretação o princípio exige uma certeza absoluta. Como certeza
absoluta só existe na matemática pura, fica impossível qualquer decisão,
pois sempre existirão dúvidas que precisam ser sanadas, novos estudos a
serem feitos, etc.
Utilizado desta maneira, o princípio da precaução se torna uma arma de
obstrução. Utilizado de forma correta, ele exige uma avaliação técnica dos
riscos e vantagens da tecnologia e, por fim, uma decisão. Como sempre, essa
decisão envolve riscos. Estes riscos têm de ser aceitáveis, como o que
tomamos quando ultrapassamos um carro ou quando um novo avião é liberado.
A interpretação do "princípio da precaução" foi utilizada durante os
últimos cinco anos para tentar anular a decisão da CTNBio, tentando forçar a
realização de estudos de impacto ambiental julgados desnecessários. Com o
novo governo, existe o risco real dessa interpretação obstrutiva ser imposta
como norma para a CTNBio, por meio da substituição dos membros de comprovada
formação científica por diletantes.
A Lei de Biossegurança brasileira é considerada uma das melhores do
mundo exatamente por combinar em um mesmo órgão os representantes dos
diversos ministérios do Executivo, além de cientistas dos diversos campos do
conhecimento. Como os riscos de biossegurança envolvem sempre várias áreas
do conhecimento, incluindo médica, ambiental, nutricional e epidemiológica,
muitos outros países estão aos poucos migrando para o modelo brasileiro.
Somente este conjunto de experiências pode avaliar racional e
tecnicamente os riscos desta tecnologia. Afinal, você gostaria de utilizar
um avião que só tivesse sido avaliado quanto à poluição que causa ao meio
ambiente?
A CTNBio tem a responsabilidade legal de dar o parecer final sobre a
biossegurança de cada produto, não sobre a adoção de uma tecnologia. Os
produtos são avaliados caso a caso. A aprovação quanto à biossegurança não
implica adoção do produto. A soja transgênica foi considerada segura e mesmo
assim o País pode decidir que não vai plantá-la por motivos comerciais. A
CTNBio concluiu pela segurança da soja transgênica e deveria estar opinando
sobra a biossegurança de inúmeros outros produtos que estão no mercado
brasileiro e que se baseiam na biotecnologia, mas, na prática, a comissão
está em vias de ser destruída.
São poucas as ocasiões em nossa história que o país preparou
antecipadamente o arcabouço legal e administrativo para a chegada de uma
nova tecnologia. É lamentável ver esse esforço completamente destruído. Quem
vai decidir sobre a biossegurança dos tratamentos imunológicos contra o
câncer baseados em anticorpos recombinantes? E sobre a utilização de vírus
recombinantes em tratamentos vasculares? E sobre o plantio de sojas
produtoras de óleos mais saudáveis? E sobre variedades de cana-de-açúcar que
produzem hormônio de crescimento? O ministro do meio ambiente, o da
agricultura ou o presidente da república?
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Fernando Reinach, 47, é doutor pela Universidade
Cornell, professor-titular de bioquímica da Universidade de São Paulo (licenciado),
foi presidente da CTNBio e é diretor-executivo da Votorantim Ventures
O Estado de São Paulo 11 de
março 2003 |
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