Ciência e
Tecnologia - 08/02/2004 - 20:43:39
A CIÊNCIA EM
AÇÃO
Revista CartaCapital
Entre
os maiores protagonistas da área científica e tecnológica, o nome de Fernando
Reinach merece um destaque especial. Pela sua fundamental contribuição ao
Projeto Genoma, cujos resultados levaram à maior aclamação internacional já
recebida pela ciência brasileira. Pela suas qualidades como
pesquisador, que lhe permitiram conquistar apoio e reconhecimento de algumas
das mais importantes sociedades científicas, entidades financiadoras e
publicações especializadas do planeta. E pelo fato de aliar talento e
competência científica com empreendedorismo, visão
para os negócios e capacidade de gestão – uma combinação rara, sobretudo no Brasil.
Na edição de dezembro, a revista Scientific American, a mais conhecida publicação de divulgação
científica do mundo, premiou os 50 maiores responsáveis pelo desenvolvimento
tecnológico. A lista dos vencedores – pesquisadores, empreendedores, líderes
políticos e empresas –, dominada por nomes de
americanos, como o presidente da Apple, Steve Jobs, alguns europeus, como
o prefeito de Londres, Ken Livingstone, e corporações
como a Toyota, Daimler-Chrysler, Merck
e Intel, inclui um brasileiro: Fernando de Castro Reinach.
Biólogo, Reinach foi considerado o mais destacado empreendedor na área de
tecnologia agrícola por ser fundador e atual presidente de importantes empresas
de pesquisa genética, como a Alellyx e a CanaVialis, por seu trabalho como diretor-executivo da Votorantim Ventures, fundo de
investimento de risco do Grupo Votorantim, e por sua
contribuição, como pesquisador e idealizador do Projeto Genoma brasileiro, que
pôs o País no “mapa internacional da biotecnologia”.
O prêmio da Scientific American
foi uma conquista inédita. Mais uma na sua carreira de cientista-empreendedor.
Em julho de
Além de ter sido um dos autores do artigo publicado pela Nature,
Reinach, que na época era coordenador da área de ciências biológicas da Fapesp,
foi o principal idealizador do Projeto Genoma, cuja coordenação geral ficou a
cargo do bioquímico inglês Andrew Simpson.
Foi de Reinach a idéia de utilizar diversos laboratórios já existentes, criando
uma rede de pesquisa, baseada no trabalho cooperativo, que ajudou a formar
centenas de pesquisadores e tornou-se um modelo internacionalmente reconhecido.
Também partiu dele a proposta de focar a pesquisa numa área em que o País tem
interesses estratégicos e onde poderia ser pioneiro, por não sofrer
concorrência tão acirrada dos países mais desenvolvidos.
“O nosso sonho era propiciar o desenvolvimento de uma indústria genética no
Brasil”, conta José Fernando Perez que, como diretor-científico da Fapesp, fez
o papel de “provocador”, demandando de Reinach um projeto capaz de transformar
intenção em realidade. “Conversamos sobre isso durante cerca de um ano antes de
ele apresentar a idéia”, relata Perez.
Reinach, que se formou em Biologia pela USP e tornou-se Ph.D.
nos EUA, pela Universidade de Cornell – onde ganhou o
prêmio de melhor tese do ano, em 1984 –, acabou aceitando o desafio
integralmente, tanto no aspecto científico quanto no empresarial. Motivado pelo
sucesso da pesquisa, criou com outros sócios-pesquisadores, empresas como a Alellyx e a CanaVialis,
que têm como objetivo explorar, no campo agroindustrial, o potencial da ciência
genética brasileira. Antes disso, já tinha fundado a Genomic
Engenharia Molecular, um dos primeiros laboratórios que realizaram testes de
paternidade no País.
Mesmo tendo acumulado, nos últimos anos, iniciativas e conquistas relacionadas
ao Projeto Genoma e à atividade empresarial, questionado sobre os momentos mais
gratificantes de sua carreira, Reinach se lembra de um passado não tão recente.
Menciona a satisfação de ter se tornado pesquisador da Fundação Rockefeller, em 1990, e quando, em 1997, seu laboratório na
USP foi escolhido, com apenas outros seis na América-Latina,
para receber financiamento do Howard Hughes Medical Institute, apoio
que lhe permitiu avançar em seus estudos sobre a contração muscular.
Há dois anos, Reinach é um dos responsáveis por outro projeto, pioneiro no
Brasil, que pretende converter conhecimento científico em retorno financeiro.
Como diretor da Votorantim Ventures,
ele é responsável pela identificação, seleção e acompanhamento de projetos
capazes de gerar novas tecnologias de grande potencial econômico. O fundo dispõe
de US$ 300 milhões e atua nas áreas de comunicação, tecnologia da informação e
ciências da vida.
Reinach acumula ainda a função de pensar nos novos negócios do Grupo Votorantim e está desenvolvendo um estudo que deverá servir
como base para a elaboração das estratégias da corporação para as próximas
décadas.
Além da experiência como pesquisador, de ser professor titular de Bioquímica na
USP, ter trabalhado em entidades de financiamento (na Fapesp e no CNPq) e na
iniciativa privada, Reinach foi também secretário de desenvolvimento científico
do Ministério da Ciência e Tecnologia. Atuou, portanto, como representante de
todos os principais agentes no universo da ciência e tecnologia. Vivência que o
coloca em posição privilegiada quando se trata de analisar, criticar ou propor mudanças para tornar todo o sistema mais dinâmico e
eficiente (entrevista à pág. 60).
Visão. Como diretor da Votorantim Ventures,
fundo que possui US$ 300 milhões para investimentos de risco, ele é responsável
pela identificação, seleção e acompanhamento de projetos Reinach, que nasceu em
São Paulo em 1956, tem dois filhos, frutos de seu primeiro casamento, André, de
20 anos, e Sofia, de 18. Apreciador de música clássica – especialmente Bach,
Beethoven e Schubert –, cinema e livros não-ficcionais, freqüentemente
refugia-se em seu sítio em Piracaia, município a
cerca de 90 quilômetros de São Paulo. “Ele fez todo o projeto de
reflorestamento do sítio e gosta de falar sobre as características de cada
planta”, conta sua mulher, a médica epidemiologista Beatriz Tess.
“Acho que ele precisa de ambientes tranqüilos e de contato com a natureza para
se inspirar”, diz ela.
A história do Projeto Genoma confirma a percepção de Beatriz. Foi do sítio que,
no dia 1º de maio de 1997, no meio de um feriado, Reinach ligou para Perez, da
Fapesp, para lhe apresentar a idéia do Projeto Genoma.
“A idéia era brilhante, revolucionária, e o nosso entusiasmo me fez ir direto
de onde eu estava, em Ubatuba, para encontrar o Fernando, em Piracaia”, lembra Perez. Para ambos, o feriado tinha
acabado e começara uma odisséia.
João Paulo Kitajima, diretor de bioinformática
da Alellyx, resume assim as qualidades e a
versatilidade do sócio e atual chefe (Reinach é o presidente interino da Alellyx): “Além de ser um cientista de mão-cheia, o
Fernando é um cara muito bem informado, ligado em tudo que está acontecendo.
Ele é um líder carismático, que nos incentiva muito, mas que também sabe fazer
o papel de chefe durão na hora de cobrar o cumprimento de orçamentos e metas”.
Reinach admite ser exigente. “Os meus alunos, por exemplo, em geral me acham
muito duro, mas, com a quantidade de informações que eles precisam absorver,
acho que não tem jeito: às vezes, elas têm de ser enfiadas na cabeça quase a
marretadas. Mas com o tempo ficamos superamigos.”
Crítico da falta de interação entre universidade e empresa, geração de
conhecimento e desenvolvimento econômico, um problema histórico no Brasil,
Fernando Reinach tem mostrado, com seu trabalho e trajetória profissional,
caminhos para a superação desse desafio.
ESTRATÉGIAS DE INTEGRAÇÃO
A aproximação entre universidade e indústria depende de mudanças e incentivos
dos dois lados, afirma Fernando Reinach CartaCapital:
Por que, no Brasil, é tão difícil converter capacidade científica em
desenvolvimento econômico?
Fernando Reinach: Nos países mais desenvolvidos, as necessidades de novas
tecnologias vêm do setor privado e induzem o governo a investir e os
pesquisadores a gerar conhecimento. E, por outro lado, a pesquisa espontânea
gera um conhecimento que muitas vezes acaba sendo desenvolvido, aplicado e
apropriado pelas empresas. São estímulos que vêm das duas pontas e dinamizam o
processo. Acho que, no Brasil, por causa do mercado fechado, do regime militar,
aconteceram duas coisas: primeiro, a indústria protegida pela política de
reserva de mercado nunca precisou investir em geração de tecnologia. A
tecnologia era comprada fora, mesmo desatualizada. Protegida da competição, a
indústria não sentiu necessidade de evolução tecnológica, por isso não
procurava a universidade. Por outro lado, a universidade, durante esse período
todo, concentrou-se na resistência à ditadura, não queria saber de parceria com
a indústria. O setor privado era visto como sendo “o mal”. Esses dois fatores
fizeram com que a universidade, onde se fazia pesquisa, e as empresas se
mantivessem distantes. Agora a indústria tem de competir internacionalmente e a
universidade está com falta de dinheiro e precisa mostrar serviço, inclusive
por meio da interação com a indústria, para justificar a sua existência.
Porque, se você não conseguir justificar a pesquisa mostrando que ela gera uma
riqueza e desenvolvimento para o País, mais cedo ou mais tarde a verba para
pesquisa desaparece.
CC: O que pode ser feito para facilitar essa interação? Algum sistema de
estímulo ao investimento privado em pesquisa?
FR: É, você poderia ter isenções fiscais para a
inovação tecnológica. Atualmente, as empresas estão tendo de competir e
procurar novas tecnologias, mas não obrigatoriamente no Brasil. Elas muitas
vezes preferem buscar tecnologia no exterior, se for mais barata ou melhor. Isso força as universidades brasileiras a
começarem a competir, o que é saudável. As universidades precisam mudar também.
Começando pela própria percepção que têm de si mesmas. Não existe ensino
gratuito. A USP, por exemplo, é uma universidade paga por todos que pagam ICMS
no Estado de São Paulo.
CC: Como foi a sua experiência no Ministério da Ciência e Tecnologia? O que o
senhor descobriu sobre os problemas do País trabalhando no governo?
FR: Quem está de fora do governo olha para lá e fala: pô,
se eu estivesse lá, fazia isso, fazia aquilo. Mas, lá dentro, você vê que é
muito mais difícil. Apesar de ter um monte de gente bem-intencionada, tem outro
monte que não quer mudar nada. Aumentou meu respeito pelas pessoas que vão para
lá, batalham oito anos e conseguem pequenos progressos. Por outro lado, a
experiência também me deu a percepção de que os processos lá são tão travados
que ou se muda isso ou se corre o risco de nunca progredir de verdade. E eu
acho que o governo tem de se manter nas coisas onde ele é indispensável, que só
ele pode fazer.
CC: E quais são as funções que cabem ao governo?
FR: Acho, por exemplo, que é preciso ter um sistema de bolsas, e ter a
capacidade de ser mais flexível, de conseguir que uma parte do investimento
venha das empresas. É preciso criar incentivos fiscais ou estímulos legais para
que as empresas participem. Também é preciso mudar as regras da universidade para
permitir essa interação. São coisas que deveriam ser feitas, mas encontram
forças de resistência enormes. Então você vai, trabalha, trabalha, trabalha...
Eu tenho uma imagem na cabeça que resume o que senti no tempo em que fiquei no
Ministério. Num daqueles petroleiros enormes que cruzam o Atlântico, colocam
você sentado numa cadeirinha na proa, bem na frente do navio, de frente para o
mar, põem um remo na sua mão e falam assim: vai remando aqui desse lado para
ver se o petroleiro vira.
CC: Como tem sido a sua experiência na Votorantim Ventures?
FR: Aqui é muito interessante, porque essa missão de olhar a universidade,
identificar o que tem de bom, o que dá para transformar em negócio, criar as
empresas e ver elas crescerem é supergratificante.
Mas você vê também que, no Brasil, há obstáculos enormes nesse processo. Por
exemplo, todo o problema de propriedade intelectual que é mal resolvido, e
apresenta um monte de empecilhos e complicações legais. Mas, mesmo com esses
problemas difíceis de resolver, existem grandes oportunidades. E é a primeira
vez que um grande grupo nacional, diz “aqui está um monte de dinheiro para
investimento em pesquisa”, procura as universidades e busca empreendedores com
idéias novas que possam gerar empresas.
CC: E já deu tempo de ver resultados?
FR: A Alellyx e a CanaVialis, por exemplo, têm resultados em termos de
geração de conhecimento. Resultado financeiro, mesmo, geração de riqueza, vai
demorar mais tempo. Mas é assim mesmo: não se trata de
um investimento para colher os frutos em dois, três anos. Você tem de criar a
empresa, gerar tecnologia, mostrar que a tecnologia funciona... Essas coisas
levam tempo.
CC: O senhor também tem feito estudos e traçado estratégias para o futuro do
Grupo Votorantim. Na sua opinião,
quais os rumos a ser seguidos?
FR: Não há nada definido. Estamos começando a pensar. Mas se você olhar, por
exemplo, a riqueza gerada no século XX, grande parte dela veio da ciência feita
no século XIX ou do período entre o fim do século XIX e começo do XX. A eletricidade,
o átomo, os semicondutores, o rádio, o raio X, a
óptica... Um computador, o que é? Eletricidade, semicondutores, chips,
software. Basicamente isso. Você pega toda a indústria petroquímica, ela veio
da química orgânica, que foi desenvolvida na virada do século. A metalurgia,
todos os metais, alumínio, as ligas de ferro, tudo isso veio da compreensão do
átomo da virada do século passado. Assim como a riqueza da Revolução Industrial
veio da compreensão da termodinâmica, alguns anos antes. Então, sempre há um
desenvolvimento científico que leva ao avanço tecnológico que gera a riqueza do
período seguinte. Estou fazendo um trabalho que tem como meta entender a
ciência do século XX. O maior desenvolvimento no século XX foi na área da
compreensão dos seres vivos. A ciência do século XIX concentrou-se na matéria
inanimada e a riqueza do século XX veio de tecnologias baseadas na matéria
inanimada. A ciência mais importante do século XX é a dos seres vivos.
Provavelmente, no século XXI, uma grande parte do desenvolvimento vai ser
baseada na ciência dos seres vivos. A partir dessa percepção, a questão é: como
devo me posicionar para melhor usufruir as oportunidades que estão aí e as que
virão? Em que preciso investir? No fim do século XIX ou no começo do XX, uma
pessoa que tivesse tido essa percepção não poderia prever o computador, mas
será que veria que teria de investir em energia elétrica, minas e metalurgia? E
agora, o que fazer? Não adianta só saber o que vai acontecer,
você tem de decidir como vai se posicionar, onde exatamente vai investir e
atuar. A aposta da Votorantim Ventures
na Alellyx, por exemplo, é uma tentativa de colocar
os peões nos lugares do tabuleiro que a gente considera estratégicos.
CC: Falando em tecnologia dos seres vivos, como o senhor vê a polêmica em torno
dos transgênicos?
FR: Acho que o governo tem um grande mérito por ter percebido que a coisa é
importante mesmo e começado a separar o que é ideologia do que é ciência.
Pessoalmente, estou pouco ligando para a soja transgênica,
se ela vai ou não ser aprovada. O problema seria você criar no País uma atitude
contra uma nova tecnologia. Seria como se, há mais ou menos cem anos, quando
estavam começando a eletrificar Nova York, surgisse um movimento aqui com o
slogan “O Brasil livre de elétrons”. É esse tipo de coisa que me dá medo.
Discutir como você vai usar a eletricidade, se vai
iluminar as ruas ou fazer uma cadeira elétrica, é perfeitamente sensato,
necessário. Eu quero iluminar as ruas e não quero a cadeira elétrica. A
eletricidade pode ter um monte de utilidades e a biotecnologia também. A
biotecnologia é um negócio global, precisamos criar aqui um sistema que
identifique o que é bom e o que é ruim, porque não há dúvida de que a nova
tecnologia vai gerar produtos bons e ruins. É inevitável. Mas demonizar a tecnologia em vez de criar mecanismos para
certificar os produtos seria de uma burrice assustadora. Quando surgiu a oferta
de eletricidade, criaram-se normas. Quem queria vender eletricidade, podia, desde que ela fosse oferecida em 110 volts ou 220
volts. Não podia ter 5 mil volts na tomada das casas e
matar todas as criancinhas que põem o dedo na tomada. Têm de haver critérios
técnicos. Não há tecnologia sem risco. É preciso saber administrar os riscos.
Por Flávio Lobo