Folha de São Paulo
São Paulo, sexta-feira, 30 de julho de 2004
OPINIÃO
Entre os heróis da ciência
FERNANDO REINACH
ESPECIAL PARA A FOLHA
Nossa necessidade de compreender
o Universo em que vivemos foi satisfeita ao longo dos séculos por
diversos "heróis". São pessoas que moldaram a maneira
como percebemos o que somos e em que ambiente vivemos.
Galileu tirou a Terra do centro do Sistema Solar, Newton mostrou como os
objetos se movem, Einstein refez nossa visão da matéria, Darwin
mostrou que somos produto de longa evolução, Freud mostrou que
somos movidos por "razões que a própria razão
desconhece". Francis Crick é mais um
desses "heróis", um dos poucos que nasceram no século
20.
Na primeira metade do século 20, um físico chamado Erwin Schrödinger publicou
um pequeno livro chamado "What is Life?". Nele afirmava que os seres vivos podiam ser
compreendidos se entendêssemos as moléculas que os constituem.
Afirmava que a ciência estava madura para justificar um ataque frontal
aos mistérios da vida. Francis Crick foi um
físico que aceitou o desafio.
O resultado foi a descoberta da estrutura do DNA, seguida pelo seu
envolvimento na descoberta do código genético (a
relação entre a seqüência do DNA e a
seqüência das proteína) e finalmente na descoberta do RNA
(a molécula que transporta a informação do DNA
permitindo a síntese de proteínas). Estas três descobertas
são o cerne da biologia molecular. Esse
conhecimento mudou completamente nosso entendimento do que é a vida.
A ciência dos séculos 17 e 18 produziu um conjunto de
explicações que nos permitiu compreender, dominar e manipular a
matéria inanimada. Entre essas descobertas estão a natureza do átomo, a química e o eletromagnetismo.
Essas descobertas nos deram um enorme poder de manipulação
sobre a matéria inanimada e impulsionaram o desenvolvimento
tecnológico do século 20. Os resultados são a
eletricidade, o rádio, o celular, o computador, a energia nuclear e a industria química.
No século 20, o grande progresso ocorreu na biologia, e nos seu centro
está a biologia molecular de Francis Crick.
Acabamos o século 20 compreendendo o funcionamento dos seres vivos,
capazes de dominar e manipular a matéria viva. É muito
provável que o desenvolvimento tecnológico do século 21
seja construído sobre esse novo conhecimento. Clones, transgênicos e células-tronco
representam o início dessa revolução tecnológica.
Mas Crick era cientista, nunca quis estar no centro
da tecnologia. Terminada a construção da biologia molecular,
ele se tornou uma nova versão de Erwin Schrödinger, escrevendo, pesquisando e incitando os
biólogos moleculares a atacar o problema do funcionamento da mente e
da consciência. Argumentou em vários livros
que estamos prontos para atacar o problema da mente tal como os
físicos estavam prontos para atacar o problema da vida cinqüenta
anos antes. Espero que ele também seja lembrado por isso no
século 21. Pessoalmente estou triste. Francis Crick
era meu herói e agora ele morreu.
Fernando Reinach, 48,
diretor-executivo da Votorantim Novos
Negócios e professor titular licenciado da Universidade de São Paulo
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