A materialização dos genes

 


O guizo tinha sido dependurado no gato: uma molécula identificada como a responsável pela hereditariedade




FERNANDO REINACH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Filhos herdam características físicas dos pais. Essa observação é provavelmente tão antiga quanto a civilização. Aproximadamente 20 mil anos atrás ela serviu de base para o homem domesticar plantas e animais. Durante milênios o homem constatou na sua experiência diária que em todo ser vivo existia algum mecanismo que garantia a hereditariedade de características, mas como dominar esse fenômeno tão fácil de observar e tão difícil de explicar?
Foi só no início do século 20 que a ciência ancorou a hereditariedade na realidade física, abandonando explicações de cunho religioso ou invocações de "fluidos" e "energias". Primeiro com Mendel, que mostrou que cada característica pode passar de maneira independente de uma geração para a seguinte obedecendo regras matemáticas precisas. A partir dessas observações surgiu o conceito de gene, uma "coisa" ainda imaterial que transmitia uma determinada característica de maneira independente das outras características, como por exemplo a cor da pele ou a superfície enrugada das ervilhas.
Foi com a descoberta de estruturas microscópicas (cromossomos), que pareciam carregar os genes e eram transmitidas de uma célula para a outra durante sua divisão, que se percebeu que o gene talvez fosse composto de alguma forma de matéria. Logo depois foi demonstrado que o DNA, um composto químico formado por quatro tipos de subunidades, estava nos cromossomos, e após um esforço de quase uma vida Avery e MacLeod demonstraram que a informação estava no DNA.
O guizo tinha sido pendurado no gato: uma molécula havia sido identificada como responsável pela hereditariedade.
Essa molécula não tinha ainda uma "cara", e era muito difícil imaginar que informações tão diferentes como a cor de um olho, a forma de um nariz ou o número de dedos numa mão pudessem estar "escritas" numa mesma molécula. Mais difícil ainda era imaginar como essa informação poderia ser duplicada e transmitida de uma geração a outra.
A descoberta em 1953 da estrutura do DNA, com sua dupla hélice de fitas complementares e antiparalelas, permitiu de imediato que se compreendesse como aquela molécula poderia não só conter a informação genética, mas permitir que ela fosse copiada e transmitida.
O mistério de como a informação estava codificada ainda demorou mais uma década para ser revelado. Em 1961 se começou a demonstrar como o DNA codifica a informação, o código genético. Em seguida, na década de 70, a tecnologia do DNA recombinante permitiu que se isolassem os pedaços de DNA que contêm os genes. E na década de 80 se aprendeu como transferir genes de um organismo para outro. Surgiram os primeiros organismos com genes inseridos de maneira cirúrgica, os famosos OGMs (organismos geneticamente modificados). Nessa mesma década toda a coleção de genes de um organismo (o genoma) foi determinada e, no ano 2000, foi a vez de o genoma humano ser decifrado.
Em menos de cem anos a ciência ancorou firmemente a hereditariedade em uma molécula química. Após passar milhares de anos como uma idéia abstrata, o gene é hoje aquele pedaço de DNA de estrutura química conhecida que podemos guardar em um tubo, na geladeira.
Hoje, estamos acostumados a falar em genes como pedaços de DNA que pegamos, colocamos na mala, levamos para outro lugar, jogamos no lixo. Esses pequenos pedaços de DNA contêm a informação genética. Se colocarmos o DNA com o gene do hormônio de crescimento num rato, obtemos um super-rato. Se colocarmos um gene que causa o câncer numa célula, ela fica maligna e causa tumores. E assim por diante.
Hoje o gene é tão material que fica difícil imaginarmos como ele era entendido no início do século 20. Uma maneira de compreender como os cientistas se digladiavam com o conceito imaterial da hereditariedade é examinar conceitos e idéias em áreas da ciência que estão iniciando seu processo de materialização.
Um campo que está passando hoje por esse fenômeno de materialização é o do funcionamento da mente. Conceitos como pensamento, dor, depressão e memória estão hoje em diferentes estágios de materialização. Já sabemos que o pensamento ocorre no cérebro, mas ainda não entendemos como ele se relaciona com a estrutura dos neurônios. O mesmo ocorre com a memória. Sentimentos e emoções como dor, sono e depressão ainda não possuem correlatos materiais perfeitos, mas já compreendemos o suficiente sobre as estruturas materiais que controlam estes fenômenos para podermos criar drogas que os controlem. O mecanismo da anestesia é bem conhecido e o funcionamento de drogas que controlam o sono e o humor, como os antidepressivos, já começam a ser entendidos.
Quem vive hoje acha difícil imaginar que talvez um dia a mente esteja tão firmemente ancorada no cérebro quanto a hereditariedade está ancorada na estrutura do DNA. Nesse dia ouviremos no rádio: "Foi retirada uma amostra da consciência do senador fulano de tal e, após exame do material nos laboratórios do Judiciário, ficou constatado que na época ele tinha consciência que estava cometendo um ato ilegal ao mandar violar o painel do Senado". Nesse dia acharemos isso tão natural quanto a notícia: "Após uma cirurgia de várias horas sob anestesia geral, sem se lembrar de nada, João acordou e sentiu no peito os batimentos do coração de Maria, que tinha morrido em um acidente de automóvel no dia anterior".
Esses dois exemplos mostram a principal consequência desse processo de materialização: ele permite que os conceitos sejam incorporados em tecnologias. E com a tecnologia vem o poder de manipular a natureza, e com o poder, novas possibilidades, novos riscos e novas responsabilidades.
Esses seres vivos, descendentes de algum macaco africano, auto-intitulados como homens sabidos (Homo sapiens), já podem manipular a constituição dos seres vivos. Afinal, clonar a ovelha Dolly a partir das células da glândula mamária de sua mãe não é muito diferente do ato de "clonar" Eva a partir de uma costela de Adão.
 


Fernando Reinach, 47, é doutor pela Universidade Cornell (EUA), professor-titular de bioquímica da Universidade de São Paulo (licenciado) e diretor-executivo da Votorantim Ventures


                                                           Folha de São Paulo 7 de março 2003