Despreparados para o sucesso
22/06/2000 Folha de São Paulo
Autor: FERNANDO REINACH
Editoria: OPINIÃO Página: A3
Edição: Nacional Jun 22, 2000
Seção: TENDÊNCIAS/DEBATES
Observações: PÉ BIOGRÁFICO
Despreparados para o sucesso
O simples pensamento de que professores possam ter recompensa financeira gela a
espinha de parte da universidade
FERNANDO REINACH
Dentro de poucas semanas será publicado na revista "Nature" o trabalho que
descreve o sequenciamento completo do genoma da bactéria Xylella fastidiosa por
um consórcio de laboratórios do Estado de São Paulo financiados pela Fapesp.
O sequenciamento do genoma da Xylella fastidiosa coloca o grupo brasileiro no
restrito clube de 13 centros de excelência que já sequenciaram um genoma
completo. O nosso é o primeiro genoma de um patógeno de planta sequenciado no
mundo e o primeiro genoma sequenciado fora do eixo EUA-Europa-Japão. Em dois
anos foram montados 30 laboratórios de sequenciamento, foram treinados mais de
300 pesquisadores e foi dominada uma tecnologia que será a base para boa parte
da biologia do século 21.
A Xylella fastidiosa não foi escolhida por acaso. Ela é responsável pela praga
do amarelinho, que infecta quase 30% dos pés de laranja do Estado de São Paulo,
causando prejuízos de mais de US$ 100 milhões anuais. Devido ao impacto da
doença, o projeto teve também apoio financeiro do Fundecitrus, organização
sustentada pelos citricultores.
A liderança brasileira na área de genomas de patógenos de planta é hoje
reconhecida internacionalmente. O USDA (Departamento de Agricultura dos EUA)
quer contratar o grupo para sequenciar uma praga semelhante que ataca as uvas da
Califórnia, fundos de investimento internacionais querem investir no consórcio,
empresas multinacionais querem negociar contratos e grupos de pesquisa de vários
países querem colaborar.
O projeto Xylella gerou novos projetos: 21 grupos de pesquisa utilizam a
sequência do genoma para tentar curar a o amarelinho. O sequenciamento da
bactéria responsável pelo cancro cítrico (Xanthomomas citri) está na sua fase
final, assim como os projetos Genoma Câncer e Genoma Cana-de-Açúcar. Além disso,
novas lideranças que emergiram no projeto vêm organizando uma segunda geração de
propostas que estão sendo avaliadas.
O sucesso dessa iniciativa da Fapesp é um fato incontestável. A questão agora é
saber se estamos preparados para capitalizar sobre o sucesso ou se ele será um
fenômeno passageiro a ser lembrado com saudade daqui a alguns anos.
Manter a liderança em uma área cientificamente importante, com extensas
implicações biotecnológicas, não é tarefa fácil. A competição virá não somente
de pesquisadores do Primeiro Mundo, mas principalmente de empresas de
biotecnologia e multinacionais.
Competir e manter a liderança implica continuar na fronteira da geração de
conhecimentos. Implica ser capaz de transformar esses conhecimentos em
resultados práticos, garantir a propriedade intelectual tanto dos conhecimentos
adquiridos quanto das tecnologias desenvolvidas e, finalmente, ser capaz de
transformar esse conhecimento em vantagens competitivas e riqueza.
Em países desenvolvidos esse processo ocorre por meio de uma série de interações
entre setores da sociedade. Em biotecnologia, o que tem ocorrido é primeiramente
o financiamento pelo setor produtivo da pesquisa acadêmica. Numa segunda etapa a
pesquisa é transferida das universidades para as pequenas empresas de alta
tecnologia, onde é transformada em produtos. Estes, por sua vez, são
desenvolvidos e comercializados pelas grandes empresas. Royalties e direitos
sobre a propriedade intelectual fluem na direção inversa, das grandes empresas
para as de alta tecnologia, delas para as universidades.
No Brasil, as dificuldades para que isso ocorra são inúmeras. As universidades
estatais não têm agilidade administrativa nem liberdade contábil para
implementar convênios ou colaborar com a iniciativa privada. No caso do projeto
Xylella, a única maneira de viabilizar rapidamente a contribuição do Fundecitrus
foi a contratação de técnicos diretamente pelo Fundecitrus para trabalhar no
projeto. A universidade não tem flexibilidade administrativa para contratar
pessoal para projetos específicos por tempo determinado nem admite a quebra da
isonomia salarial.
Complementações salariais têm que ser concedidas na forma de bolsas de pesquisa.
Quando ficou claro que o número de cientistas e programadores era insuficiente
para administrar a bioinformática dos projetos, a inflexibilidade da estrutura
universitária praticamente paralisou a contratação do pessoal necessário. Como
admitir um biólogo num departamento de computação ou um doutor em computação em
um departamento de bioquímica? Por incrível que pareça, a maior dificuldade em
convênios com instituições do exterior é conseguir um mecanismo para
internalizar as verbas sem perder a liberdade de administrá-las.
Quando fundos de investimento procuram o consórcio querendo aplicar recursos,
não faltam idéias de como utilizá-los. Mas não foram encontrados ainda
mecanismos legais que permitam o investimento, já que o consórcio não é uma
empresa nem tem existência legal. A transformação do consórcio em uma empresa
parece difícil. O simples pensamento de que professores universitários possam
ter recompensa financeira pelo trabalho desenvolvido gela a espinha de parte da
universidade.
Dada a realidade brasileira, o que vai ocorrer? O risco é que venhamos a manter
nossa liderança acadêmica, mas que os benefícios tecnológicos e econômicos sejam
usufruídos por nossos competidores. Outra possibilidade é que, após quatro ou
cinco projetos bem-executados, a equipe se desfaça aos poucos _alguns migrando
para o exterior em busca da remuneração compatível com sua expertise, outros
voltando ao cotidiano da vida acadêmica, outros procurando desafios na
iniciativa privada, já viciados na adrenalina que circula por três anos nas
veias dos participantes dos diversos projetos de genômica.
Por outro lado, o sucesso do projeto Xylella e a constatação de que não estamos
ainda preparados para o sucesso pode ajudar a desencadear as mudanças
necessárias no nosso sistema de ciência e tecnologia.
Fernando Reinach, 43, doutor pela Cornell University (EUA), é professor titular
do Departamento de Bioquímica da Universidade de São Paulo.