24/09/2002 - Folha de São Paulo -Sinapse
Da incerteza do laboratório para o investimento de risco
SUZANA BARELLI
free-lance para a Folha de S.Paulo
A carteira de trabalho é um documento novo para o biólogo Fernando de
Castro Reinach. Só no final do ano passado, então com 45 anos, esse
cientista renomado, pai da idéia do
Projeto Genoma
brasileiro e membro da
Academia Brasileira de
Ciências desde 1998, teve o seu primeiro emprego com a carteira
assinada.
Caio Esteves/Folha
Imagem |
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Fernando de Castro Reinach, em
frente à estufa da Alellyx Applied Genomics, em Campinas |
O convite para ser diretor-executivo da
Votorantim
Ventures, fundo de investimento de risco do conglomerado nacional,
foi seguido por uma apresentação formal ao mundo do trabalho. Além do
registro, o biólogo aumentou o número de vezes em que coloca terno e
gravata antes, o traje era uma exceção, concedida apenas em caso de
eventos especiais da Academia ou nos oito meses em que foi secretário de
Desenvolvimento Científico, do
Ministério da Ciência e
Tecnologia, em 1999.
Mas, para Reinach, apenas as formalidades são novidade em sua função
atual: a de um executivo responsável por garimpar projetos promissores
nas áreas de biotecnologia, telecomunicações e tecnologia da informação.
O caminho dos microscópios e tubos de ensaio rumo aos negócios, na
verdade, começou a ser trilhado no início da década de 90, quando
Reinach se juntou a um grupo de amigos para fundar a
Genomic Engenharia
Molecular, um dos laboratórios pioneiros para testes de DNA no
Brasil foi lá, por exemplo, que o rei Pelé fez o exame que comprovou ser
ele o pai de Sandra Regina.
Reinach procurava, naquela época, mostrar as aplicações práticas das
então pouco conhecidas três letrinhas do nosso código genético. "Quando
lançamos a empresa, os testes de paternidade eram uma novidade; hoje,
são uma commodity", afirma, sobre o negócio então bastante promissor.
Dono da idéia da criação da Genomic (empresa que vendeu em 2001), ele
participava das reuniões principais da companhia, mas a maioria do seu
tempo era dedicada às pesquisas no laboratório do
Instituto de Química.
Atualmente, o cientista está licenciado da universidade.
A Votorantim Ventures conta com um fundo de US$ 300 milhões nessa área,
provenientes de recursos do grupo da família Ermírio de Moraes. Cada
projeto recebe entre US$ 1 milhão e US$ 15 milhões, com expectativa de
duração de três a sete anos. Com oito empresas em andamento com projetos
na área de tecnologia e ciências da vida e várias em estudo, o fundo
ainda tem mais de US$ 200 milhões em caixa para investimentos que, por
definição, terão retorno incerto a médio e longo prazo. Nos Estados
Unidos, conta Reinach, apenas um em cada dez projetos de biotecnologia
vinga.
O desafio do executivo em seu novo emprego é mostrar que um cientista
também pode ter sucesso no outro lado do balcão, e não apenas
manipulando fórmulas em laboratórios. Guilherme Emrich, sócio do fundo
mineiro Fir Capital
Partners, que também tem contratos de financiamento de risco para
projetos de biotecnologia em Minas Gerais e em São Paulo, diz que o
comum nessa área são os cientistas ficarem ligados a uma assessoria de
projetos, enquanto a direção do fundo fica nas mãos de um executivo. "É
um desafio interessante para Reinach, que tem bom trânsito na
universidade", afirma Emrich.
Para José Fernando Perez, diretor-científico da
Fapesp (Fundação de
Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo), o funcionário da Votorantim
tem a visão do cientista associada à do empreendedor e, ainda, gosta de
um bom desafio. Em 1997, Perez instigou Reinach a descobrir um caminho
para a investigação e a pesquisa do genoma no Brasil, numa conversa que
marcou o início do projeto de sequenciamento genético da Xylella
fastidiosa (leia).
A crença do cientista nos fundos de capital de risco como aliados da
ciência começou quando ele ainda estudava no exterior, na década de 80
ele fez pós-graduação na
Universidade de Nova York e na
Cornell University
Medical College, nos EUA, e pós-doutoramento em
Cambridge,
Inglaterra. Naquele período, o termo "venture capital", ou simplesmente
investimento com capital de risco, era quase palavrão no Brasil. "Nos
Estados Unidos, há um círculo virtuoso entre a universidade e as
empresas. Aqui, faltava esse caminho, que pode ser financiado pelas
empresas do tipo 'venture capital' ", afirma o cientista-executivo. E
explica seu raciocínio: a universidade desenvolve a ciência básica, que
é aperfeiçoada em pequenas empresas financiadas por fundos de capital de
risco. O projeto vinga e a empresa promissora pode ser comprada por uma
grande corporação, que paga impostos que voltam para a universidade.
O crescimento da internet reacendeu a crença do biólogo no financiamento
das pesquisas de biotecnologia por investimento privado. Nessa época,
ele embarcou na idéia de Lúcia Hauptman, sua segunda mulher, e do
economista Persio Arida, um dos pais do Plano Real, de lançar um "data
center". Com formação no mercado financeiro e passagem pelo
CS First Boston,
Lúcia trabalhava no
Banco
Opportunity com Arida. A união dos três gerou a .comDomínio, no
final de 99, uma central de processamento de dados para clientes
corporativos. "Reinach é um extraordinário cientista, com um senso
prático do que pode ser aplicado fora do universo da ciência pura", diz
Arida.
Os recursos para viabilizar a
.comDomínio
cerca de US$ 50 milhões vieram da
J.P. Morgan, que
mais tarde comprou a parte dos três sócios (hoje, eles são minoritários
no negócio). A Votorantim Ventures também investiu na idéia. Quando
Reinach achou que era hora de sair da administração do "data center",
foi chamado pela Votorantim para tocar o braço de biotecnologia do fundo.
Nesse meio tempo, ainda em 1999, ele se mudou para Brasília para
trabalhar com o amigo Luiz Carlos Bresser Pereira no Ministério da
Ciência e Tecnologia. "Quando Bresser foi nomeado ministro, falei que
podia contar comigo, e ele acabou me chamando", lembra Reinach.
Os dois primeiros investimentos de Reinach à frente da Votorantim
Ventures estão ligados exatamente ao genoma, a área que o consagrou como
um dos pais do sequenciamento pioneiro da bactéria Xylella fastidiosa. O
fundo está investindo US$ 11 milhões na
Alellyx ("Xylella"
ao contrário)
Applied Genomics, empresa que visa, a partir da plataforma genômica,
desenvolver e aumentar a produtividade e a qualidade dos produtos
agroindustriais, com foco nas culturas de soja, laranja, uva, eucalipto
e cana-de-açúcar. É a continuidade do trabalho, depois do sequenciamento
dos genes em laboratórios, à procura da solução das doenças causadas
pela bactérias. Os cinco sócios da Alellyx (o sexto é a Votorantim)
trabalharam com Reinach no mapeamento do genoma.
A segunda empresa é a
Scylla, uma
fabricante de software que permite gerenciar, via internet, os dados
para o sequenciamento do genoma. Seu objetivo é tornar comercial um
programa semelhante ao usado no Projeto Genoma, a rede
Onsa,
que permitia que os vários laboratórios envolvidos no estudo se
comunicassem virtualmente. A expectativa da empresa é vender o software
para grandes companhias farmacêuticas e consórcios nacionais e
internacionais que fazem o sequenciamento genômico. A empresa é dirigida
por João Meidanis, pesquisador da
Universidade Estadual
de Campinas e também participante do Projeto Genoma, e mais quatro
sócios pesquisadores.
Na Votorantim, Reinach não trabalha apenas na área de biotecnologia. "Todos
os projetos são analisados pela equipe", conta. Normalmente, ele analisa
dois projetos por dia e conversa muito com os jovens cientistas.
Qualquer idéia razoável é estudada na tentativa de torná-la uma grande
idéia. Muitos cientistas são levados ao exterior para conhecer seus
concorrentes. "As pessoas não podem sair daqui achando que perderam.
Mesmo quando não investimos no projeto, o saldo tem de ser positivo",
afirma.
Em todas as conversas, Reinach tem de explicar o conceito de "venture
capital". Muitos lhe perguntam qual a taxa de juros ou a multa se o
programa não alcançar o resultado pretendido. A Votorantim investe como
sócia do projeto, sem juros ou multas, mas na espera dos bons resultados.
E o cientista entra com suas idéias e força de trabalho. Reinach usa o
exemplo das caravelas para tornar a idéia mais clara. Na época das
grandes navegações, de cada dez embarcações, uma voltava com as riquezas,
duas ou três pagavam o investimento, sem grandes lucros, e as demais se
perdiam. As turbulências dos projetos fazem parte do investimento, mas a
chegada das caravelas, também.
Visitas às universidades e participação em congressos e seminários
também são frequentes. É a forma de motivar novos cientistas, assim como
aconteceu com o próprio Reinach. Ele conta que decidiu ser biólogo após
uma aula no
Colégio Santa Cruz, escola de classe média alta na zona oeste da
capital paulista. A professora faltou e seu marido, Luiz Edmundo
Magalhães, então professor de biologia da USP, foi substituí-la. "Ele
não sabia o que falar e deu uma aula panorâmica sobre a biologia, com
tudo que estava relacionado à ciência. Foi bárbaro", conta. O
adolescente Fernando ficou fascinado e decidiu a sua profissão. Também
fez vestibular para medicina, pressionado pelo pai, que considerou uma "covardia"
prestar biologia. "Entrei e tranquei", lembra. E foi seguir as ciências
da vida.
É do professor Magalhães, hoje aposentado pela USP, a primeira e melhor
dica de leitura que Reinach teve. O livro "La Logique du Vivant", de
François Jacob, sobre a história da biologia, é a publicação que mais
lhe marcou. Outra referência é "O Acaso e a Necessidade", do biólogo
francês
Jacques Monod, prêmio Nobel em fisiologia e medicina em 1965. O
título da publicação, que se tornou uma expressão proverbial nas
discussões sobre a origem da vida, vem do grego Demócrito, que afirmou:
"Tudo o que existe no universo é fruto do acaso e da necessidade". Seria
um cientista empreendedor um acaso ou uma necessidade?