Um ralo na ciência
17/02/94 Folha de São Paulo
Autor: FERNANDO REINACH
Editoria: DINHEIRO Página: 2-2
Edição: Nacional FEB 17, 1994
Seção: OPINIÃO ECONÔMICA
Observações: PÉ BIOGRÁFICO
Um ralo na ciência
FERNANDO REINACH
O que o leitor desta Folha pensaria se eu contasse que tenho mantido de CR$ 4
milhões a CR$ 6 milhões em uma conta corrente durante os últimos meses sem
aplicá-los no fundão ou numa caderneta de poupança? E se dissesse que este
dinheiro pertence ao governo brasileiro? E se por fim afirmasse que este
dinheiro público, desvalorizado dia-a-dia, está em uma conta pessoal, com meu
CPF?
A esta altura, o leitor deve estar pensando que sou corrupto louco, mas a
verdade é pior. Este dinheiro não é aplicado, acredite se quiser, porque o CNPq
(Conselho Nacional de Pesquisa) não permite.
Isto acontece com milhares de cientistas brasileiros cujo trabalho é financiado
pelo CNPq e pelo PADCT (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico) com verbas federais e um empréstimo de US$ 150 milhões do Banco
Mundial.
No Brasil, como em todos os países desenvolvidos, o financiamento da pesquisa é
feito através de projetos. Como a quantidade de dinheiro é limitada, os projetos
são avaliados e competem pelas verbas disponíveis. Quando o projeto é aprovado,
o CNPq pede ao cientista que abra uma conta pessoal no Banco do Brasil e o
dinheiro é depositado. Durante um ou dois anos, o pesquisador deve gastar o
dinheiro realizando o projeto. Findo este prazo presta conta do dinheiro com
notas fiscais e o extrato completo da conta.
Ter um projeto aprovado não implica que o dinheiro vá ser depositado. Faz mais
de dois anos que o CNPq aprova mais projetos que o orçamento disponível. A
espera pode ser longa e o dinheiro é depositado sem aviso prévio. Quando o
dinheiro é depositado não pode ser aplicado. A solução é gastar na primeira
semana, comprando tudo que é necessário, tentando planejar para que não falte
nada nos próximos anos. Na prática, isto é impossível e uma parte do dinheiro
fica no banco por vários meses, desvalorizando dia-a-dia, para cobrir
imprevistos, como o conserto de equipamentos.
É difícil imaginar uma maneira mais eficiente de desperdiçar os parcos fundos
alocados para a ciência e tecnologia. Neste ralo ridículo e em outros parecidos
uma porcentagem entre 20% e 50% do orçamento é perdido. Perde o país, que tem de
pagar os empréstimos ao Banco Mundial, revolta-se quem paga imposto e frustra-se
o cientista que não pode trabalhar. Ganha o Banco do Brasil que aplica o
dinheiro destas contas correntes e fica com os rendimentos.
Este ralo não é novidade. Quando o presidente Itamar Franco sancionou a lei
8.666, onde foi determinada a obrigatoriedade da aplicação de auxílios, parecia
que o problema estava resolvido. Agora o CNPq argumenta que a lei não menciona
contas de pessoas físicas, como as que o CNPq exige que sejam abertas, e não
permite que aplique o dinheiro. Me parece óbvio que a lei não pode exigir que
dinheiro em contas de pessoas físicas seja aplicado. Dinheiro público não pode
estar na conta de pessoas físicas: não é por este motivo que alguns deputados
vão ser cassados? Afinal, de quem é o dinheiro depositado pelo CNPq nestas
contas? Se for do pesquisador, ele pode aplicar e prestar contas da correção
monetária e dos rendimentos, mas como fica o imposto de renda? Se for do CNPq, o
que o dinheiro está fazendo em uma conta com o CPF do pesquisador? O fato é
simples. O dinheiro está sendo perdido e o CNPq, PADCT, Ministério da Ciência e
Tecnologia não resolvem o problema.
Para terminar, gostaria de informar que o dinheiro sob minha responsabilidade,
recebido do CNPq, está sendo aplicado. A correção monetária e os juros não estão
sendo gastos. Caso este problema não seja resolvido, terei o maior prazer de
prestar contas do principal, sacar em papel moeda os rendimentos, picá-los e em
cerimônia formal jogá-los ralo abaixo. Afinal, não é isso que se faz com o
dinheiro público? Ou será que o CNPq vai pedir os rendimentos de volta para
pagar os funcionários que administram o ralo?
FERNANDO REINACH, 37, doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de
Cornell (EUA), é professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade
de São Paulo e representante da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência
(SBPC) no Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.