USP: uma proposta radical
24/06/96 Folha de São Paulo
Autor: FERNANDO REINACH
Editoria: OPINIÃO Página: 1-3
Edição: Nacional Jun 24, 1996
Seção: TENDÊNCIAS/DEBATES
Observações: PÉ BIOGRÁFICO
USP: Uma Proposta Radical
A USP vai ter que admitir que uma fração de seus docentes e funcionários produz
pouco ou nem aparece
FERNANDO REINACH
João e Maria são professores universitários. Com salário de R$ 2.500, se acham
malpagos. Ocupam o mesmo cargo e recebem o mesmo salário. Um é competente e
malremunerado, o outro não merece o que recebe. Estão unidos em sua
reivindicação corporativa por aumentos idênticos. Garantem, assim, que não
precisam ser comparados.
As universidades públicas do Estado de São Paulo recebem uma fração do ICMS e
são ''autônomas''. Cartelizadas, dividiram o bolo, fixaram o tamanho das fatias
e se ajudam na tarefa de esconder suas mazelas. A cartelização recompensa a
ineficiência e pune a competência. Estão unidas em sua reivindicação por uma
fatia maior do ICMS a ser dividida segundo as regras do cartel. Garantem, assim,
que não precisam competir ou ser comparadas.
O governo do Estado de São Paulo, que respeitava a gestão ''autônoma'', resolveu
que o serviço prestado pelas universidades não vale a fração do ICMS. Como não
tem coragem de exigir uma melhor administração dos recursos, mudou a sistemática
de pagamento e praticamente congelou as verbas repassadas às universidades.
Garantiu uma imagem de austeridade sem carregar o ônus de exigir um serviço
melhor e mais barato. Como resolver esse impasse sem ferir a autonomia
universitária e a liberdade acadêmica? É necessário aumentar a eficiência das
universidades.
O governo deveria provocar o rompimento do cartel das universidades, fornecendo
mecanismos legais e exigindo uma autonomia verdadeira. Critérios objetivos para
a divisão das verbas, baseados em indicadores de produtividade e qualidade,
forçariam uma saudável competição entre as universidades. Forçadas a competir
pela sua fração do ICMS, as universidades teriam que diminuir a burocracia,
romper o corporativismo, a isonomia salarial e a estabilidade no emprego. Enfim,
teriam que viver mais próximas à realidade.
A USP é hoje a melhor universidade brasileira. Por falta de competidores capazes
de mostrar seus podres, vive do nivelamento por baixo. Finge não perceber que,
comparada com as melhores universidades norte-americanas ou européias, seu
desempenho acadêmico é, na melhor das hipóteses, medíocre. Apesar do progresso e
das ilhas de competência, a USP vem se distanciando gradativamente das melhores
universidades.
Sob pressão, a USP vai ter que aceitar a realidade. Vai ter que admitir que uma
fração de seus docentes e funcionários produz pouco, não produz ou nem sequer
aparece na universidade. Vai ter que revelar que criou mecanismos de decisão e
controle tão intrincados que nunca ninguém pode ser responsabilizado por
qualquer decisão. Somente por meio desse processo de expiação é que a USP vai
poder se livrar das comparações locais, afirmar sua vocação de universidade de
elite e procurar seu lugar entre as melhores universidades do mundo.
Então talvez possa justificar uma fatia maior do ICMS. Por enquanto, deve
demonstrar que é capaz de fazer mais e melhor com os quase R$ 2 milhões que o
contribuinte coloca aqui dentro a cada dia. O Estado de São Paulo necessita de
uma universidade de primeira linha e tem a cultura e a riqueza necessária para
levar adiante esse projeto.
Para se elitizar a USP tem que competir agressivamente. Se outras universidades
não conseguem administrar seus custos, vamos aproveitar para atrair seus
melhores docentes. A USP não pode se dar ao luxo de perder jovens cientistas
para as universidades do Primeiro Mundo, enquanto os mais velhos se aposentam
precocemente para serem recontratados no prédio ao lado. É preciso utilizar
agressivamente a nova autonomia para criar um espírito de corpo, recompensando a
competência com salários decentes. Sempre existirão universidades interessadas
nos docentes e funcionários do segundo time.
A necessidade de buscar a excelência acadêmica e a eficiência administrativa
forçaria obrigatoriamente a USP a levar a sério seus programas de avaliação.
Esses programas hoje são patéticos, já que não implementam seus resultados.
Funcionários e docentes avaliados como improdutivos ou mesmo incompetentes não
são demitidos e continuam a receber a mesma remuneração dos avaliados
favoravelmente. Isso não só ridiculariza os avaliadores, mas é receita certa
para desestimular a produtividade, servindo de motivo de chacota para os que
passam os dias pelos corredores.
As universidades, como qualquer setor cartelizado e acostumado com o Estado-babá,
se beneficiaria muito de um choque de darwinismo selvagem.
Fernando Reinach, 40, doutor em bioquímica pela Universidade de Cornell (EUA), é
professor titular do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP (Universidade
de São Paulo).